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Teoria do Domínio do Fato ou Objetivo-Subjetiva e o Processo 470 do STF.



Não sou especialista em Direito Penal, talvez por isso tenha me chamado atenção quando um dos Ministros do STF invocou a “Teoria do Domínio do Fato”, ou Objetivo-Subjetiva, para fundamentar o seu voto e condenar um dos réus do Processo 470 e pavimentar o caminho para condenar o ex-ministro José Dirceu em razão de fatos dos quais não há nenhuma prova que ele tenha participado e nos quais tenha influenciado. Isso mesmo, como o Código Penal adota, como regra, a teoria monista, pela qual todos os que concorrem para a realização do crime incidem nas penas a ele cominadas, ressalvando, contudo, a diferenciação entre coautor e partícipe, expressa e como não há prova de que José Dirceu tenha praticado a conduta ilícita prevista nas hipóteses legais sob julgamento busca-se afirmar que ele possuía o domínio do fato. 


 
Fiquei intrigado porque, até onde eu sei a aplicação dessa teoria não é possível à luz do ordenamento jurídico nacional. 
 
Essa teoria é na realidade um critério material de aferição da autoria delitiva que surge em contraponto às teorias objetivas da autoria na tentativa de melhor explicar alguns pontos relativos ao concurso de pessoas, como a autoria mediata (na qual o autor mediato não realiza o verbo núcleo do tipo nem concretiza materialmente a realização do fato, porque se serve de terceira pessoa para isso). Em síntese, domínio do fato é o domínio que o agente tem sobre o resultado típico[1], parte do critério objetivo-subjetivo para conceituar o autor do delito como sendo aquele que tem o controle final do fato e suas circunstâncias. É uma teoria que se assenta em princípios relacionados à conduta e não ao resultado.
Busquei ensinamentos de Heleno Fragoso, e li “nos crimes dolosos, a doutrina moderna tem caracterizado como autor quem tem o domínio final do fato, no sentido de decidir quanto à sua realização e consumação, distinguindo-se do partícipe, que apenas cooperaria, incitando ou auxiliando. A tipicidade da ação não seria, assim, decisiva para caracterizar o autor” [2].
Necessário seria ter o agente o controle subjetivo do fato e atuar no exercício desse controle (Enrique Cury). Assim, seria autor não apenas quem realiza a conduta típica (objetiva e subjetivamente) e o autor mediato, mas também, por exemplo, o chefe da quadrilha que, sem realizar a ação típica, planeja e decide a atividade dos demais, pois é ele que tem, eventualmente em conjunto com outros, o domínio final da ação “[3].
Não há prova que José Dirceu tenha praticado os atos ilícitos, teria ele, quando muito, se omitido? Se for isso sabe-se que a aplicação ou não da Teoria do Domínio do Fato nos crimes omissivos não é possível segundo o Prof. Damásio de Jesus, no seguinte sentido: “a teoria do domínio do fato, que rege o concurso de pessoas, não tem aplicação aos delitos omissivos, sejam próprios ou impróprios, devendo ser substituída pelo critério da infringência do dever de agir. Na omissão, o autor direto ou material é quem, tendo dever de atuar para evitar um resultado jurídico, deixa de realizar a exigida conduta impeditiva, não havendo necessidade de a imputação socorrer-se da teoria do domínio do fato. O omitente é autor não em razão de possuir o domínio do fato, mas sim porque descumpre o mandamento de atuar para evitar a afetação do objeto jurídico. Se não age, não pode dirigir o curso da conduta. Assim, nos delitos omissivos próprios, autor é quem, de acordo com a norma da conduta, tem a obrigação de agir; nos omissivos impróprios, é o garante, a quem incumbe evitar o resultado jurídico, ainda que, nos dois casos, falte-lhes o domínio do fato” [4].
ORIGEM
A teoria do Domínio do Fato tem sua origem em Welzel, que, em 1939, ao criar o finalismo, introduziu a idéia da teoria em estudo no concurso de pessoas, adotando como autor aquele que tem o controle final do fato.
A doutrina majoritária no Brasil ao tratar da Tentativa, Cúmplice e Impunidade, não trata da culpabilidade e da questão do mandante do delito, a lei não castiga a “intenção”, nem de presunção de culpabilidade.
A Teoria do Domínio do Fato é amplamente dominante na doutrina alemã atual. Vários autores estrangeiros já adotam a Teoria do Domínio do Fato, sendo comum na Europa, mas não no Brasil.

POSIÇÃO DO CÓDIGO PENAL.
O CP de 1940 adotou o conceito restritivo de autor, assim considerado aquele que realiza o núcleo do tipo. O CP, nos arts. 29 e 62 fazem distinção entre autor e partícipe, agravando a pena em relação ao agente que executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa.
Apesar disso há casos específicos em que a Teoria do Domínio do Fato pode ser utilizada. Essas hipóteses estão contidas na legislação brasileira em vigor. Me refiro à legislação ambiental (Lei n. 9.605/98) que introduziu em nosso ordenamento a pessoa jurídica como autora de delitos. Não podemos vislumbrar a hipótese de se punir com privação de liberdade o próprio ente jurídico. Portanto, a lei prevê outras espécies de sanções como a aplicação de multas, o fechamento da empresa e outras medidas administrativas.
Seguindo orientação do art. 2.º da mencionada lei, “quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir sua prática, quando podia agir para evitá-la”.
CRÍTICAS AO DOMÍNIO DO FATO

A teoria do domínio do fato não esteve, e não está imune de críticas. As considerações mais importantes estão na órbita da posição especial de execução, na quantidade de domínio do fato e, também, na autoria mediata.

A posição especial de execução, ou o chamado domínio dos executores, é inegável quando se trata de comportamento negativo, isto é, os sujeitos que realizam uma execução podem se omitir de fazê-la. Contudo, ainda que os sujeitos não possam ser substituídos por outros, a possibilidade de omitir não fundamenta o domínio do acontecer positivo. Isto porque há a possibilidade de interrupção da ação por qualquer sujeito integrante da empreitada criminosa, bem como a possibilidade de uma pessoa que não participa da realização do comportamento proibido interromper a execução.

Por conseguinte, se não se pergunta quem poderia evitar a ação – pode ser que sejam muitos os sujeitos que estejam nessa situação, ainda que se introduza uma limitação às pessoas obrigadas a evitar; e se, todavia, preparou-se um substituto, nem sequer o executor poderia evitar o fato -, se não se apresenta a questão de quem é que configurou a ação tal como é, obtém-se como resposta que sobre o executor recai exatamente aquilo que já não se acha configurado, enquanto limite, pelos demais intervenientes.

(...) O que deriva disso é a realização concreta do tipo, composta de quadro e enchimento, sendo o enchimento do quadro precisamente a execução que se ajusta ao quadro e que por isso é também execução daqueles que criaram o quadro. ”[5]

A questão da quantidade de domínio do fato, não é outra coisa senão a quantidade de intervenção, ou seja, quem de forma mais relevante (quantitativamente) contribuiu para o evento.

“Portanto, há somente uma aproximação ao domínio do fato dos intervenientes, e não uma classificação dos intervenientes em função de que exista uma intervenção com domínio do fato ou uma intervenção sem domínio do fato.” [6].

Desta feita, domínio do fato tem tanto o partícipe quanto o autor, certo é, porém, que um tem muito (autor) e outro pouco (partícipe).

Pelo exposto, conclui Jakobs:

“(...) A qualquer interveniente lhe incumbe, enquanto membro do coletivo, a execução no quadro configurado para ela. Que cometa ou omita é indiferente: em todo caso, a execução infringe seu dever, ainda que seja por mão alheia. Uma vez que se compreendeu esta especialização das regras de imputação relativas ao comportamento comum e em regime de divisão de tarefas, a execução perde toda posição especial na fundamentação da competência na relação interna do coletivo. Certamente, a execução é a que constitui externamente a violação do direito, isto é, a arrogação alheia, e por isso não há ação sem execução, ou, dizendo com maior exatidão, somente a execução é um ato; porém para dentro segue sendo uma prestação a mais, ainda que seja a última, com outras que a precederam no tempo; e pode suceder que as prestações anteriores, dependendo das circunstâncias, caracterizem a ação com maior clareza do que o faz o último ato. Em tal caso, pode ser que o adequado seja apenar o executor a título de cúmplice. A intervenção a título de autor numa cumplicidade perde seu aparente caráter contraditório, uma vez que se percebeu que se trata de uma prestação coletiva em que pode ocorrer que a determinação do quadro pese muito e o último ato, pouco. Resulta evidente que os limites não são estáticos, como sempre acontece a respeito das quantificações.” [7].

Por último, vale ressaltar quanto às críticas, a questão da autoria mediata. Aqueles que tecem críticas a esse respeito dizem que a autoria mediata nada mais é que autoria direta disfarçada, ou seja, o autor mediato utiliza-se de um instrumento (autor imediato) para a execução de um ato. O último, contudo, não é autor culpável; apenas um instrumento. Desta feita, o autor mediato é responsabilizado como autor direto que age por meio de um instrumento. Não sendo necessário, igualmente, socorrer-se da teoria do domínio do fato para a solução da autoria mediata.

(...) o sujeito que atua intervém num círculo de organização alheio, todo o que se passa é que aquilo que da perspectiva do genótipo é mera natureza, apresenta-se do ponto de vista fenotípico como conduta de uma pessoa, isto é, como comportamento do assim chamado instrumento. Por conseguinte, ‘instrumento’ é natureza com aparência humana, de modo que não o é o sujeito que ocupa uma posição subordinada em um aparelho organizado de poder, e não o ostenta quem executa com dolo, porém sem intenção, ou faltando-lhe algum outro elemento de qualificações. O uso de um instrumento é o emprego das forças instrumentais de outra pessoa, porém, precisamente, das forças instrumentais não responsáveis. Dizendo em termos extremos: é indiferente que alguém atice um cachorro ou um sujeito embriagado contra uma vítima.” [8]

Nessa ótica, portanto, parece escassa a utilidade da teoria do domínio do fato na atual dogmática do Direito Penal, pois, muitas vezes, há insuficiente explicação nos caso de co-autoria, participação, induzimento, instigação ou, ainda, determinação para cometer delitos, tendo em vista a posição especial de execução, a quantidade de domínio do fato ou, até mesmo, a autoria mediata.



Conclusão
Acredito que a aplicação da Teoria do Domínio do Fato é inadequada fora das hipóteses expressamente previstas em lei, pois em não havendo lei a sua aplicação significará uma modificação estrutural enorme. Ademais não há legitimidade na sua oportunista aplicação, pois o que a legitima é um debate democrático no Congresso e com a sociedade.
Não se pode aceitar que o Poder Judiciário legisle, nem que ceda à pressão midiática e aplique teorias alienígenas para fundamentar o irracional desejo de condenação do ex-ministro José Dirceu. Ademais o CP de 1940 não acolheu a teoria em questão.



[2] Damásio E. de Jesus, Teoria do domínio do fato no concurso de pessoas, 2. Ed. São Paulo: Saraiva 2001
[3] Heleno Cláudio Fragoso, Lições de direito penal: a nova parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 1985
[4] Damásio E. de Jesus, Phoenix; informativo do Complexo Jurídico n. 23, agosto/2001.
[5] JAKOBS, Günther. Crítica à teoria do domínio do fato. 1ªed. São Paulo: Manole, 2003. p.20/21.
[6] JAKOBS, Günther. Crítica à teoria do domínio do fato. 1ªed. São Paulo: Manole, 2003. p.22.
[7] JAKOBS, Günther. Crítica à teoria do domínio do fato. 1ªed. São Paulo: Manole, 2003. p.29
[8] JAKOBS, Günther. Crítica à teoria do domínio do fato. 1ªed. São Paulo: Manole, 2003. p. 31

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