DÉCADA DE 80[1]
A década de 1980 revelou outra
realidade para a sociedade brasileira, a nossa enorme vulnerabilidade externa.
A crise e o fracasso do sonho de ser
potência mundial recolocaram a discussão de questões aparentemente superadas pelo
rápido crescimento econômico durante os anos do regime militar. A centralização
política e econômica do período pós-1964 favoreceu o florescimento de novas
relações entre as esferas de governo e a crescente subordinação dos interesses
locais e regionais a decisões emanadas do poder central.
A liberdade e a
autonomia que haviam caracterizado o papel das burguesias regionais na fase
anterior ao golpe militar anunciavam-se como coisa do passado, superadas pela
transformação da realidade brasileira. Afinal e em tese o Brasil havia se transformado
em país industrializado, com regiões metropolitanas altamente povoadas, com um
perfil de classe política diferente do anterior e com condições de redesenhar
as relações entre as esferas de poder.
Os anos 80, entretanto, revelaram a
retomada de velhos traços da tradição política brasileira. A crise econômica e
a abertura política recolocaram antigos pontos do debate do federalismo e explicitaram as divergências dos
interesses locais e regionais, contrários à perda do controle sobre os recursos
tributários, que haviam de alguma forma se mantido silenciados pela
possibilidade de alimentar os seus gastos pelas várias formas particulares de
articulação com a esfera federal, abertas pelas linhas de crédito oficiais e
pelo acesso aos gastos orçamentários.
De um lado, o virtual esgotamento das
fontes de financiamento e a adoção do ajuste recessivo como estratégia de
política econômica delinearam perspectivas desfavoráveis para os governos
estaduais sustentarem a política de gastos, modelo proposto e executado nos tempos de excepcionalidade institucional, A pequena expressão dos excedentes
orçamentários, o comprometimento das relações intergovernamentais e as
dificuldades com a captação de recursos externos reduziram o leque de
alternativas de financiamento dos Estados. A crescente dependência em relação à
negociação de verbas com a União e ao endividamento interno com órgãos
oficiais, bancos privados e agentes financeiros dos próprios Estados deixava
antever a necessidade de ajustes na estrutura tributária, com o objetivo de
recuperar o potencial de arrecadação e o peso da receita fiscal no
financiamento do setor público.
No entanto, a discussão a respeito do
formato tributário colocava-se também como resultado do novo quadro de correlação
de forças que se desenhava a partir da abertura política e da proximidade das
eleições para governadores e congressistas qualificados para escolher o futuro
presidente da República no Colégio Eleitoral. As alterações de ordem política
colocavam empecilhos à continuidade do movimento de concentração da receita
tributária em mãos do governo federal e alimentavam as disputas
inter-regionais.
O sistema tributário, de alguma
forma, teria que incorporar as demandas emergentes nos campos político e
econômico, por meio de medidas que objetivassem elevar a arrecadação e
conciliar os interesses das três esferas de governo. Não há dúvida de que a
definição de uma política econômica recessiva impunha limites à tentativa de se
alcançarem, simultaneamente, ganhos na receita tributária e melhor distribuição
entre as esferas de poder.
As discussões em torno da temática
tributária retrataram bem as dificuldades de se harmonizarem as posições da
União, dos Estados e dos Municípios no novo quadro político-econômico.
A preocupação com a deterioração
financeira dos Estados, aliada ao novo arranjo das forças políticas, levou os
mentores da política econômica a promoverem alterações no ICM, buscando atender
a um duplo movimento. Em primeiro lugar, a ideia foi garantir o crescimento da
arrecadação estadual. Em 1980, houve o aumento de um ponto percentual na
alíquota do ICM, elevando a cobrança para 15% no Sul e Sudeste e 16% nas demais
regiões do país.
Além disso, procurou-se elevar a
arrecadação por meio de cortes no valor dos gastos tributários. A principal medida
nesse sentido teve por base a Emenda Constitucional n° 23, que determinou o fim
do crédito do ICM em operações isentam e acabaram com as isenções sobre
mercadorias importadas, bem como ordenou a inclusão do IPI na base de cálculo
do ICM.
Some-se a isso tudo a crise de
financiamento e as finanças estaduais O segundo choque do petróleo e o salto
das taxas de juros internacionais, provocado pela mudança da política
americana, explicitaram, definitivamente, a fragilização do balanço de
pagamentos e ampliaram a necessidade de captação de recursos externos. A
política de crescimento com endividamento revelou todo o seu potencial
desestabilizador, e a crise cambial transformou-se na restrição fundamental à
continuidade do desenvolvimento do país, levando à deterioração financeira do
setor público e à aceleração inflacionária.
A posição dos bancos internacionais
de suspender os empréstimos voluntários exigidos no financiamento do déficit em
transações correntes fez que a economia perdesse a principal fonte de
abastecimento de recursos líquidos ao Estado (Belluzzo, 1988). O virtual
esgotamento da fonte de financiamento externo e a obrigação de gerar os
recursos a serem transferidos ao exterior mudaram os rumos da política
econômica e forçaram a redefinição do padrão de crescimento dos anos 70.
O colapso do financiamento externo e
as decisões de política econômica colocaram o Estado no epicentro da crise e
internalizaram os problemas de financiamento no setor público, sem gerar,
simultaneamente, recursos compatíveis com o montante de encargos financeiros de
responsabilidade do governo.
A crise explicitou o esgotamento da estratégia
desenvolvimentista e do caráter schumpeteriano do Estado, evidenciando a sua
impotência em continuar comandando o processo de crescimento, em demarcar
horizontes e criar novos espaços de acumulação.
O descompasso entre os encargos externos de
responsabilidade do setor público e a disponibilidade de recursos fizeram o
governo se voltar, em última instância, para as fontes de financiamento
interno, não lhe restando outra alternativa senão elevar o passivo externo do
Banco Central (ampliando o processo de estatização da dívida externa com o
crescimento dos DRMEs e dos Depósitos de Projetos) e expandir a base monetária,
captar recursos internos de crédito, aumentar a colocação de títulos da dívida
mobiliária e garantir outras formas de crescimento ad hoc do passivo não
monetário do Banco Central.
Esse movimento ampliou a participação do setor
público nos empréstimos globais do sistema financeiro e gerou a expansão
inusitada da dívida interna líquida do setor público (Teixeira & Biasoto Júnior,
1988; Bontempo, 1988).
A dívida mobiliária federal assumiu
crescente importância na dívida interna líquida do setor público, mas, dada a
sua estreita vinculação com a dívida externa, perdeu o espaço que anteriormente
ocupava como instrumento de geração de recursos líquidos para a ampliação das
operações ativas de fomento das autoridades monetárias (Cavalcanti, 1988;
Biasoto Júnior, 1988).
Desse modo, o governo viu-se às
voltas com a crise do financiamento externo e com o comprometimento das fontes
de financiamento interno, sobretudo a dívida mobiliária, de que se servia para
multiplicar as aplicações ativas do orçamento monetário e superar as limitações
do sistema financeiro doméstico. O fim do papel estratégico dos créditos
externos e o comprometimento da dívida interna com as necessidades de
financiamentos geradas pelos encargos externos marcaram o momento da
fragilização das autoridades monetárias e colocaram em xeque a base da
estrutura de financiamento da política de fomento e do conjunto de gastos
fiscais embutido no orçamento monetário.
Tal movimento ganhou dimensão com a
perda do dinamismo das poupanças compulsórias (FGTS, PIS, Pasep, FAS) e com o
esvaziamento do papel dinâmico dessa massa de recursos financeiros como fonte
de alimentação de fundos e programas e de linhas de financiamento controladas
pelo governo. Importantes para manter gastos em áreas específicas e alimentar
as relações com outras esferas da administração pública e com o setor privado, as
poupanças compulsórias sofreram claro processo de corrosão a partir da
desaceleração da taxa de crescimento da economia e dos problemas com o retorno
das aplicações. O caráter pró-cíclico de suas bases de arrecadação, o uso da
receita em empréstimos subsidiados e a generalização da inadimplência tornaram
incompatíveis a continuidade do fluxo de recursos e a manutenção da estrutura
financeira do agente repassador.
A perda da capacidade fiscal também
contribuiu, decididamente, para o agravamento das condições de financiamento
público. A tendência de queda da carga tributária acompanhou o movimento de
declínio da taxa de crescimento da economia, os efeitos da aceleração
inflacionária e a renúncia de arrecadação implícita nos incentivos, isenções e
abatimentos criados ao longo do tempo e usados à exaustão em benefício dos
setores considerados prioritários na estratégia oficial da segunda metade dos
anos 70.
Os aperfeiçoamentos na tributação e a
elevação nominal da carga tributária não compensaram os efeitos da recessão e
da inflação sobre a receita tributária. O aumento da imposição de contribuições
sociais ligadas à Previdência Social e a criação de contribuições extra-orçamentárias
aliviaram, parcialmente, a perda da receita, mas não conseguiram evitar a queda
do poder de financiamento fiscal e a redução dos gastos orçamentários, que
ainda foram prejudicados em razão da transferência de recursos para cobrir o
desequilíbrio do orçamento monetário. A dificuldade de sustentação dos
programas de gastos fiscais afetou um dos elos básicos das relações
intergovemamentais, e os Estados não conseguiram manter as aplicações em áreas
atendidas com recursos federais, pois a União garantiu a centralização
tributária, apesar das alterações nas transferências constitucionais, enquanto
os Estados viveram o período de mais baixa participação no total de recursos
tributários efetivamente disponíveis.
A deterioração da estrutura de
financiamento das empresas estatais, acompanhando o colapso da captação de
recursos externos, revelou outra face da crise do setor público, criando
obstáculos à sustentação das relações intergovemamentais em áreas de atuação do
setor empresarial. As empresas tipicamente públicas e dependentes de recursos
fiscais foram atingidas com cortes orçamentários e perderam a capacidade de
desempenhar as funções a que se destinavam. O setor produtivo estatal perdeu condições
de financiamento e deixou de cumprir o papel dinâmico de articulação com o
investimento privado e de complementaridade com os gastos de outras esferas de
governo.
O esvaziamento das fontes de
financiamento público comprometeu o poder da União de conduzir e dinamizar o
processo de crescimento. Apesar de os instrumentos que viabilizaram a concentração
do poder financeiro e o comando federal na área fiscal permanecerem
praticamente intactos, ficou patente o esgotamento da capacidade da União de
avançar crédito, de expandir o conjunto de seus gastos e de alimentar as
relações financeiras intergovemamentais.
Por outro lado, a eleição do déficit
como metassíntese do programa econômico patrocinado pelo FMI inviabilizou a
manutenção da política do setor público de usar o endividamento para ampliar os
gastos. O programa adotou o controle estrito do crédito interno líquido, com
metas de expansão monetária e creditícia consistentes com os objetivos de
reduzir a necessidade de financiamento do setor público, de conter a demanda agregada
e de gerar um superávit comercial capaz de atender à parte das obrigações
externas não cobertas com dinheiro novo (Sampaio Júnior, 1988; Marques, 1989;
Bacha, 1983).
A estratégia de controle do déficit
público, na ausência de reformas abrangentes na estrutura de financiamento e
diante do virtual colapso das fontes externas, preocupou-se em negar a prática
expansionista dos gastos públicos apoiada no sobreendividamento. O corte do
crédito das autoridades monetárias e das agências federais, as restrições às
contratações de novos empréstimos, bem como a determinação de condicionar o
acesso aos relendings ao pronunciamento da SEPLAN e à emissão dos chamados
avisos de prioridade, buscaram frear a expansão dos gastos de todo o setor
público, envolvendo, obrigatoriamente, a União, os Estados, os Municípios e as
empresas estatais.
O FMI via na contenção da demanda de
crédito a principal dificuldade a ser superada na tentativa de se cumprirem os
tetos estabelecidos para os ativos líquidos das autoridades monetárias e as
metas das necessidades de financiamento do setor público.
Os primeiros sinais de que a
programação das metas do acordo não seria respeitada levaram o FMI a criticar
duramente a baixa contribuição das empresas estatais no esforço de justamento e
a expressar preocupação com os governos estaduais por "efetuarem
empréstimos junto ao sistema bancário nacional a um nível incompatível com o
estabelecido no programa". O governo respondeu ampliando o controle do
endividamento e endurecendo as metas relativas ao setor público com medidas de
políticas monetária e fiscal agressivas, que visavam garantir um orçamento
operacional superavitário em 1984.
Os anos 80 são exemplo de como uma
economia dependente e com mercado interno pobre podem levar ao caos.
DÉCADA DE 90 AOS DIAS DE HOJE.
As mudanças no cenário econômico mundial
e da visão do mainstream nos anos 90 alteraram a forma de gestão da política macroeconômica
e da condução da política fiscal, especialmente a partir de 1994 quando o
Presidente Itamar Franco decide implantar o Plano Real.
A maior integração mundial ampliou o movimento
de capitais e incorporou ao circuito da valorização do capital internacional os
países emergentes. A inserção no mercado financeiro internacional pôs fim ao
isolamento das políticas domésticas e requereu a adequação da estrutura institucional
à lógica financeira de valorização dos estoques. Além disso, a gestão da política macroeconômica
passou a ser vista como meio de atender as expectativas dos investidores e assegurar
a estabilidade e o retorno dos investimentos. Os dirigentes devem respeitar a lógica
financeira internacional, favorecer as expectativas de ganho dos agentes
econômicos e defender a continuidade das políticas adotadas, construindo um regime
de política econômica com um horizonte capaz de dar aos investidores condições
de traçarem cenários e de avaliarem os riscos na escolha dos seus
portfólios. O novo momento trouxe
desdobramentos ao debate sobre a política fiscal. A visão dominante defende que
o papel central da política fiscal é o de eliminar o risco de default e servir
de fiadora do espaço de valorização do capital, incutindo confiança nos
investidores e garantindo a rentabilidade esperada das aplicações. A mudança de
perspectiva deixou em segundo plano o resultado fiscal tradicional (NFSP) e
alçou
como principal indicador da política
fiscal a ideia de sustentabilidade da dívida. Este arcabouço teórico incorporou
as expectativas sobre o movimento futuro da situação fiscal como elemento de
avaliação. Os investidores formam as expectativas sobre o comportamento
esperado dos juros, do câmbio e das condições de valorização da riqueza a
partir da visão prospectiva de solvência da situação fiscal.
A nova proposta de política fiscal
ganhou força na economia brasileira a partir da crise cambial de 1999. A
assinatura do acordo com o FMI alterou a lógica de ondução da política fiscal.
A obrigação de garantir a
sustentabilidade da dívida, independentemente dos valores de juros e de câmbio,
tornou-se o objetivo da política fiscal.
Não se pode negar que o governo
manteve a coerência e adotou como estratégia a definição dos superávits
primários exigidos nos cenários de queda da relação dívida/PIB.
O 1º. governo Lula seguiu a
estratégia definida no acordo com o FMI e deu continuidade à política voltada
para a redução da dívida pública. Na visão das autoridades econômicas, a
perseverança no esforço fiscal é o caminho inelutável para se obter credibilidade
e dar impulso ao círculo virtuoso do crescimento.
A atual crise
econômica da América Latina é o resultado do modelo de economia liberal adotado
desde o início dos anos 90. A
estabilização com valorização das moedas nacionais, ao lado da abertura
comercial indiscriminada e da liberalização financeira, provocaram a
deterioração das contas do balanço de pagamentos e a necessidade de captar
crescentes volumes de recursos externos.
A questão da política fiscal dos anos 90 levou em 2002, segundo o
Professor Francisco Lopreato a uma situação de vulnerabilidade externa grave e
“A vulnerabilidade externa tornou os países
dependentes da liquidez internacional e obrigados a sustentar altas taxas de
juros, bem como ofertar uma série de ativos (como dívida pública e
privatizações) capazes de garantir a rentabilidade dos capitais dispostos a
financiar o buraco das contas externas. A
ampla liquidez internacional garantiu taxas de crescimento expressivas durante
algum tempo. Entretanto, a retração após as crises da Ásia e da Rússia desnudou
o quadro de fragilidade externa e forçou a adoção de medidas econômicas
restritivas. Os resultados foram a desaceleração econômica e as fortes
oscilações das moedas nacionais quando há sinais de estresse no mercado
internacional.” [2].
No Brasil, o Plano Real garantiu a queda da
inflação, mas a condução do chamado "Plano Real" (que deveria chamar-se "Processo Real", pois é obra sempre inconclusa) deixou pesada herança para o Presidente Lula. Inúmeros "nós" precisaram ser desatados, entre eles, a baixa taxa de crescimento, o problema do
balanço de pagamentos, a dívida pública, o endividamento externo, a
instabilidade cambial e o desemprego.
Esse foi o quadro encontrado por Lula.
[1] O colapso das finanças estaduais e a crise da
federação / Francisco Luiz Cazeiro Lopreato. - São Paulo: Editora UNESP. IE - Unicamp,
2002.
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