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SOBRE A REVOLUÇÃO DE 1.917.


Não há dúvidas sobre o seguinte fato: a revolução russa de 1.917 foi o maior acontecimento da história no século XX, pois o capitalismo e sua lógica foram abalados com a possibilidade de novos sistemas, econômico e político, serem implantados em todo o mundo, com a participação direta da classe trabalhadora.
A Rússia, depois a URSS, poderia ter sido um Estado operário[1] saído de uma revolução campesina e proletária, que aboliu o regime capitalista e instaurou formas de propriedade coletiva e planificação da economia, mas perdeu-se na burocratização do poder, um processo que comprometeu a legitimidade institucional e na burocratização do partido.
Mas não é possível mais fechar os olhos a um fato não menos verdadeiro: a criação dos mitos e mentiras referentes à Revolução de Outubro de duas categorias.
A primeira categoria de mitos e mentiras é composta pelos que provêm da burguesia ou dos social-democratas. Poder-se-ia listar uma extraordinária antologia de afirmações conservadoras e levianas de autoria de jornalistas e homens de Estado, os quais a partir de 1.917 só davam uma existência de dias, quando muito de semanas, a um Estado acusado de ser composto por homens incultos e capazes das piores monstruosidades, etc., etc.
A segunda categoria de mitos e mentiras é fabricada por homens que a partir de 1.923, estiveram na direção da União Soviética e foram levados, por razões e circunstâncias que fogem ao objetivo deste ensaio, a reescrever a própria história da Revolução de Outubro, chegando algumas vezes a desfigurar seus protagonistas, seja divinizando Lenin ou caluniando outras dirigentes, dente eles Trotsky, atribuindo a eles papéis que não representaram.
Ainda no campo de ação dessa segunda categoria há um fato a ser ponderado: durante muito tempo esses dirigentes pintaram a imagem de que a URSS era um país onde reinava a felicidade e onde só alguns seres maléficos, desejosos de restabelecerem o capitalismo e o soldo de potências estrangeiras, causavam de tempos em tempos perturbações prontamente sufocadas[2]. Essa segunda categoria de mitos e mentiras não tinha como destinatário o rebanho burguês, como a primeira, mas os operários.
Mas qual a razão disso? Acredito que a História nos pregou uma peça, pois ao contrário do que Marx previa a revolução irrompeu na periferia e não no centro do capitalismo.
Como sabemos a Revolução socialista teve início na Rússia atrasada e não na Alemanha, Inglaterra ou França, mais desenvolvidas em termos capitalistas, o que tornou-se um problema para seus dirigentes, pois em não havendo uma classe operária consolidada, articulada e organizada na URSS os dirigentes revolucionários passaram num primeiro momento a substituir a classe trabalhadora e depois o Partido passou a ser uma espécie de tutor político da classe trabalhadora, o que pode causou um distanciamento do Partido em relação aos desejos e aspirações dos trabalhadores[3], um distanciamento que o tempo pode ter conduzido a URSS à perestroika.
Os dirigentes soviéticos tornaram-se porta-vozes da burocracia, uma burocracia que se por um lado nega à classe que diz representar o direito à efetiva participação no poder e na construção do Estado socialista, por outro lado, à sua maneira, defende a manutenção das novas relações de produção (coletivização da propriedade e planificação da economia), uma contradição?
Para Trotsky a contradição é apenas aparente, pois é através dos instrumentos não democráticos de coletivização e planificação que a burocracia cria e mantém seus privilégios (e passou a buscar exclusivamente sua a manutenção do poder, dos seus privilégios, renegando a internacionalização, que teria sido o papel histórico da Revolução de Outubro) reduzindo a URSS a um Estado operário e em processo de degeneração pela burocracia estata. Nessa linha acredito que foi o distanciamento da classe trabalhadora e a burocracia do PCUS que lançou as sementes da perestroika (em certa medida, Trotsky antecipou isso quando afirmou que “... ou uma contra-revolução social vitoriosa reconduzirá a União Soviética ao sistema capitalista ou então o desenvolvimento da revolução socialista mundial e das massas soviéticas, estimuladas pelos progressos econômicos do país, entrarão em conflito com as algemas burocráticas que saberão quebrar por meio de uma revolução política, e assim a construção do socialismo continuará no quadro da democracia soviética restaurada.” [4]).
Parece que Trotsky estava certo e a burocracia asfixiante trouxe sob o nome de perestroika a tal contra-revolução social que reconduziu a União Soviética ao sistema capitalista.
Há quem diga[5], inclusive, que o próprio Lênin nos últimos meses de sua vida política verificou que estava em minoria no Bureau Politique e tendo como seu único aliado Trotsky buscou organizar o XII Congresso do PCUS com objetivo de recolocar a burocracia do partido no seu devido lugar. Essa é uma afirmação séria, pois no documento “Carta e Notas ao Congresso, 23 a 31 de Dezembro de 1.922” Lênin apresenta propostas de combate ao perigo burocrático, dentre elas está a necessidade de ocorrer: “... um alargamento dos órgãos dirigentes, principalmente pela introdução de ‘numerosos operários’, situados abaixo da camada que há cinco anos se meteu nas fileiras dos funcionários dos Sovietes e que pertenciam antes ao numero dos simples operários e dos simples camponeses.” [6]
E no mesmo congresso Shliapnikov, falando em favor da Oposição dos Trabalhadores,jocosamente cumprimenta os burocratas dizendo: “Vladimir Ilich disse ontem que o proletariado como classe, no sentido marxista, não existe (na Rússia) Permitam-se congratular-me com vocês por serem a vanguarda de uma classe inexistente.” [7]
Em 2009 completar-se-á 20 anos da queda do muro de Berlim, mas o mundo não está melhor. De lá para cá assistimos em cores, via satélite e ao vivo mortes. Millhares de mortes e a paz prometida pelo neoliberalismo não aconteceu. O que falta ao mundo é o exercício da generosidade, da justiça e do afeto, virtudes que devem ser fruto da construção coletiva, participativa e, fundamentalmente, democrática.
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[1] Trotsky afirma em A REVOLUÇÃO TRAIDA que a URSS, devido a um concurso excepcional de circunstâncias como o isolamento internacional, refluxo da revolução no mundo, atraso econômico e cultural do país, etc., sofreu uma contra-revolução política que não atentou contra as novas relações de produção, estabelecidas pela Revolução de 1.917, mas roubou o poder político ao proletariado para o transmitir a uma burocracia, cujos interesses são distintos dos da classe trabalhadora e opostos. (conforme Pierre Frank na Introdução de A REVOLUÇÃO TRAIDA, Edições Antídoto, Lisboa, PORTUGAL com Introdução de Pierre Frank e Traduzida por M. Carvalho e J. Fernandes.


[2] Conforme afirma Pierre Frank na edição portuguesa de A REVOLUÇÃO TRAIDA.
[3] O próprio Lênin se mostrava incomodado com esse fato, tanto que num congresso dos sovietes em dezembro de 1921 ele,argumentando contra os que se intitulavam, com demasiada insistência, “representantes do proletariado” disse: Desculpem-me, mas o que consideram proletariado? A classe trabalhadora empregada na indústria em grande escala. Mas onde está a indústria em grande escala (de vocês)? Que tipo de proletariado é esse? Onde está a indústria? Por que ele está ocioso? (Sochibenya, vol. XXXIII, p. 148, citado por Isaac Deustscher no livro TROTSKY, O PROFETA DESARMADO, ed. Civilização brasileira, p.39).
[4] Conforme Pierre Frank em A REVOLUÇÃO TRAIDA, p. 14, Edições Antídoto, Lisboa, PORTUGAL com Introdução de Pierre Frank e Traduzida por M. Carvalho e J. Fernandes.
[5] “Jornal das Secretárias de Lênin” e “O ultimo combate de Lênin”, de M. Lewis, citado por Pierre Frank no livro A REVOLUÇÃO TRAIDA, ob. cit.
[6] Carta e Notas ao Congresso, 23 a 31 de Dezembro de 1.922, Lênin
[7] Il Syezd RKP (b), p. 109, fato citado às fls. 39 do livro de Isaac Deuscher.

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