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O JUDICIÁRIO E SEU VIÉS AUTORITÁRIO

A pessoa passa a ser chamada de excelência todos os dias. Daqui a pouco, começa a acreditar que é mesmo.” (ministra Carmem Lúcia, do STF)

Magnifica a entrevista que o site Consultor Jurídico trouxe com o advogado e ex-presidente
da OAB São Paulo José Roberto Batochio. Ele levantou questão das mais relevantes ao tratar de tema muito caro a todo democrata: o autoritarismo.
Para Batochio o autoritarismo não acabou, mas mudou de forma, pois se antes ele era facilmente identificado hoje o autoritarismo se manifesta de forma diferente, seria, segundo ele, verificável o viés autoritário na atuação de juízes, delegados de polícia, auditores fiscais, eu acrescentaria promotores de justiça.
Estaríamos diante de um “novo autoritarismo”, mais perigoso porque os inimigos das liberdades e dos direitos fundamentais seriam representantes da lei e nesse momento têm apoio popular para fazer o mal em nome de um bem maior, verdadeiros utilitaristas.
Um paralelo interessante que Batochio faz é com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, segundo ele um dos maiores prejudicados com as medidas do governo Busch tomou após os eventos de 11 de setembro foi o direito de defesa. E citou expressamente a operação “lava jato” como o maior exemplo da presença dessa mentalidade no Brasil, pois num Estado de Direito é inadmissível que uma investigação se baseie no tripé “prisão de suspeito antes de culpa formada; encarceramento dele para forçá-lo a delatar os outros; e vazamento seletivo de informações para conquistar a opinião pública”, noutras palavras o modus operandi de Sérgio Moro teria viés autoritário.
Ler a entrevista me remeteu a um belíssimo trabalho de Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab[1] no qual ela analisa o vínculo existente entre o Poder Judiciário e a ditadura civil-militar brasileira instaurada com o golpe de 1964.
A pesquisadora apresentou as origens e os elementos caracterizadores da ditadura civil-militar brasileira, discorreu-se acerca dos fundamentos jurídicos que sustentavam o regime ditatorial e demonstrou a relação de lealdade e de nepotismo entre o Judiciário e a ditadura, uma verdade inconveniente. Tudo para concluir que o contexto histórico em que a ditadura civil-militar foi instaurada facilitou o ingresso de membros da magistratura comprometidos com o projeto político autoritário, penso que os efeitos disso estão presentes até hoje.
O trabalho ressalta que a vigência dos Atos Institucionais, da Constituição Federal de 1967, da Emenda Constitucional n. 1/69 e da Lei de Segurança Nacional concorreu para o exercício da magistratura em prol da ditadura e demonstrou que a relação entre a magistratura e o governo ditatorial não se originou com o golpe de 1964, apenas recrudesceu-se com o seu advento.
Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab demonstrou ainda a omissão da maioria dos magistrados, em relação às graves violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura civil-militar e afirmou que essa omissão colaborou, em grande medida, para a sua perenidade, impunidade e institucionalização da violência no Brasil de ontem e de hoje.
O advogado José Roberto Batochio afirmou que os servidores citados por ele acreditam que representam fielmente a lei, mas que a aplicam de forma repressiva em razão das suas visões de mundo “em atos que deveriam ser isentos de valoração”, trata-se de afirmação corajosa, com a qual concordo.
Penso que dos três poderes clássicos do Estado Democrático de Direito apenas o Judiciário não é essencialmente democrático, já que não é submetido ao escrutínio do “demos” (povo) na definição de seu acesso, composição, promoção e acesso às funções de direção dos tribunais, e em pleno século XXI merece reflexão.
E por que não é democrático? Porque o acesso dos membros do Poder Judiciário dá-se com fundamento na meritocracia na medida em que seus membros são escolhidos com base numa demonstração de mérito técnico, ou profissional, mediante concursos públicos, já no Executivo e no Legislativo os detentores do poder decisório principal são políticos eleitos diretamente pelo povo.
Nos cursos de graduação aprendemos que a jurisdição é prerrogativa dos membros do Poder Judiciário. E muito embora a jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, seja una e indivisível, didaticamente é possível classificá-la quanto à sua graduação ou categoria quanto à matéria, quanto ao organismo jurisdicional, quanto ao objeto, quanto à função, quanto à competência, etc. Recupero o conceito de jurisdição porque acredito que a hiperconcentração de poder e legitimidade no Poder Judiciário esvazia mais do que os demais Poderes, esvazia o necessário movimento e envolvimento da sociedade civil nas questões políticas e cidadãs. Um exemplo são as decisões que interferem nos orçamentos municipal, estadual e federal, ou seja, decisões que alteram leis e políticas públicas de cujo processo construtivo o Judiciário não participou, como escrevi recentemente.
E recupero o conceito também porque acredito que o centro de gravidade do desenvolvimento jurídico não está propriamente na legislação, na burocracia, na ciência do direito ou na jurisprudência, mas na sociedade mesma. Há na sociedade – entre a ação humana e as estruturas sociais – uma tensão contínua, pois na primeira a diversidade se contrapõe à unidade da segunda. E as estruturas e instituições nada mais são que artefatos humanos cabendo ao Direito harmonizar a tensão entre ação humana e estruturas sociais, assim como compatibilizar diversidade e unidade. Tanto isso é verdade que podemos afirmar que as estruturas e instituições transformam-se continuamente.
A doutrina faz uma distinção entre agentes públicos e agentes políticos, sendo que os agentes políticos seriam “… os titulares de cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado. São agentes políticos apenas o presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos chefes do Executivo, isto é, ministros e secretários das diversas pastas, bem como os senadores, deputados federais e estaduais e vereadores. O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um múnus público…”.
Contudo, a reflexão necessária é a seguinte: sendo os juízes, órgãos do Poder Judiciário ou titulares de cargos estruturais à organização política do país, não deveriam ser tratados como agentes políticos? E os cargos de direção dos diversos tribunais não deveriam ser ocupados através de eleição direta, com participação popular efetiva?
Há um viés aristocrático na forma de acesso dos juízes à carreira que os conduz a posturas autoritárias. Acredito que as promoções de juiz substituto para juiz titular de 1ª, 2ª, 3ª entrâncias e entrância especial e depois para desembargador poderiam ocorrer através de outros concursos públicos ou através de eleições.
Porque a função jurisdicional torna os magistrados agentes políticos, profissionais que carregam grande responsabilidade, suas decisões são capazes de influenciar no destino da sociedade à qual eles que devem servir e que os legitima.
Não são os magistrados agentes públicos comuns, são diferenciados é verdade, essa é mais uma razão para, através de Emenda Constitucional, ser revista a forma de promoção e de acesso aos cargos de direção do Poder Judiciário.
Não sendo realizado esse debate estaremos apenas reproduzindo a lógica aristocrática de natureza essencialmente elitista e de viés autoritário.
Acredito na Democracia como um sistema de governo em que o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos (povo), direta ou indiretamente, por meio de representantes eleitos.
Mas e os concursos nesse contexto? Penso que o acesso de magistrados por concursos não são garantia permanente à sociedade. Afinal, se por um lado os políticos ineficazes ou corruptos são submetidos ao escrutínio popular e podem não voltar a ser eleitos (e hoje existem os controles do MP, TCE, TCU, “Ficha Limpa”, etc.), por outro os funcionários concursados gozam de estabilidade no emprego, e os juízes desfrutam de vitaliciedade e inamovibilidade, o que os diferencia.
Por outro lado a vitaliciedade e inamovibilidade são condições necessárias ao bom exercício e adequada prestação jurisdicional, pois a sociedade não pode ter juízes receosos de uma eventual demissão, ou de uma transferência involuntária. Contudo, se por um lado tais proteções viabilizam bons julgamentos, por outro criam uma categoria profissional extremamente diferenciada e privilegiada o que pode afastá-la dos anseios sociais. Isto é particularmente grave por se tratar de funcionários do Estado que, diferentemente dos demais burocratas públicos, tomam decisões de especial gravidade para os cidadãos, afinal, são os detentores de um “poder político de Estado”, e não apenas seus servidores administrativos. É necessário pensarmos em anular o caráter aristocrático do Poder Judiciário.
Temos de refletir e propor a criação de mecanismos institucionais que torne a magistratura mais adequada ao século XXI e às sociedades democráticas, começando com o fortalecimento e maior independência do CNJ em relação ao Poder Judiciário e com a abertura de um debate amplo sobre formas mais democráticas de acesso às funções de direção nos tribunais e quando falo em formas democráticas me refiro a eleições que garantam o respeito à soberania popular.




[1] “A Ditadura de toga” in http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=468cbac056133a99

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